Peculiaridades do ascetismo na vida cristã e consagrada

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Introdução

O caminho para a unidade com Deus está ligado à vida interior de uma pessoa e a seus esforços para crescer na fé e na santificação. Sem autodisciplina, é difícil orar, amar o próximo ou viver os conselhos do evangelho na vida consagrada. É por isso que o convite de Cristo para entrar no reino de Deus pela “porta estreita” (Mateus 7,13) exige um caminho prático. “Os cristãos não nascem, mas se tornam”, escreveu Tertuliano.

Historicamente, o ascetismo está associado ao movimento monástico na Igreja, que gradualmente assumiu uma forma institucional. No processo de desenvolvimento desse modo de vida, o ideal ascético de São Basílio o Grande, é digno de atenção. De acordo com Pavlo Fedyuk, professor do Pontifício Instituto de estudos medievais em Toronto, São Basílio queria que suas comunidades monásticas fossem o início de uma renovação da vida cristã geral na Igreja daquela época. A atenção do Pai da Igreja não estava voltada para o que distingue um modo de vida de outro hoje, mas para o que os une – o Santo Sacramento do Batismo, que é a fonte e o fundamento de toda a vida de Deus no homem. O resultado do Batismo é uma nova vida (cf. Romanos 6,4) e, portanto, São Basílio associou a adoção da vida ascética ao Batismo. Ambos os modos de vida têm como objetivo a unidade em torno dos mandamentos de Deus por meio do amor sacrificial a Deus e ao próximo. Nesse sentido, o ascetismo se aplica a todos os cristãos.

Perspectiva teológica

O teólogo francês Louis Bouillier descreve o ascetismo como um esforço para colocar a vida em harmonia com a fé. O termo em si vem do grego askeìn, que significa “se exercitar, treinar”, e indica, antes de tudo, exercícios repetidos usando um método típico de um atleta ou soldado para adquirir certas habilidades e competências. Assim, a formação é o espaço no qual todos os exercícios do ascetismo cristão são articulados.

A dinâmica de exercitar-se na identidade cristã ou na formação de uma pessoa consagrada madura tem suas próprias dimensões específicas. Ouvindo as Sagradas Escrituras, vale a pena observar que o significado primário de ascetismo está associado à purificação e, portanto, à luta contra o pecado. Já no início das Escrituras, lemos: “Quando você faz o bem, fique contente, mas quando não faz, o pecado está à sua porta: ele já tomou posse de você, mas você deve dominá-lo” (Gênesis 4,7). Com base na percepção de que a vida espiritual de um cristão é marcada pela pressão constante do pecado, o ascetismo surge como expressão de um conjunto de estratégias que nos permitem vencer o poder e as tentações do pecado.

Na Sagrada Escritura, encontramos vários modelos e exemplos de luta espiritual. Por exemplo, a luta de Jacó com o anjo (cf. Gn 32,25) expressa a luta pela qual todo cristão deve passar em sua vida a fim de alcançar a plena bênção espiritual. Assim como Jesus no deserto, também somos chamados a vencer as tentações do maligno (cf. Mt 4,1-11). Embora as tentações nem sempre venham da ação direta de espíritos malignos, elas são frequentemente influenciadas pelo diabo, que é chamado de tentador no Evangelho (cf. Mateus 4,3). Em geral, precisamos discernir cuidadosamente quais as ações tentadoras que realmente vêm do diabo e quais têm outra causa relacionada às nossas paixões e concupiscências (cf. Tiago 1,14-15). Os escritores da Igreja e os professores espirituais do Oriente Cristão definiram as tentações como λογίσμοι, ou seja, pensamentos, impulsos, desejos que estimulam uma pessoa de fora ou de dentro, sugerindo a possibilidade de um ato contrário ao Evangelho. A evolução desses ensinamentos pode ser encontrada, em particular, em Evagrius de Pontus, que desenvolveu a doutrina de oito desses pensamentos, que se tornou a base para a doutrina dos sete (na tradição ocidental) ou oito (na tradição oriental) pecados capitais.

Em última análise, a tentação significa provação. O significado final das provações é submeter uma pessoa a um certo tipo de sofrimento para testar sua fidelidade e para que ela possa ganhar mais força (cf. Sb 3,6) e liberdade.

A identidade do ascetismo cristão

O elemento da luta espiritual contra as paixões está presente em muitas religiões e filosofias da religião do mundo. Além disso, encontramos muitos ascetas, como monges, que praticam restrições, inclusive aquelas que são semelhantes aos votos monásticos. Por exemplo, as comunidades monásticas sufis (um movimento místico e ascético no Islã) ensinam a obediência a um professor espiritual escolhido, bem como a luta contra as qualidades negativas do “nafs” (نَفْس), ou seja, a natureza humana inferior e animal. Exemplos semelhantes podem ser encontrados no hinduísmo no conjunto de tipos heterogêneos de ascetas: muni (sábio silencioso), yati (autocontrolado), sadhu (sábio, aquele que atinge a meta diretamente), tägya (eremita errante), yogi (buscador da unidade), swami (mestre do caminho espiritual), etc. Essas definições são frequentemente usadas em um sentido amplo, sem referência a um movimento específico, mas todos enfatizam um significado metafísico que aponta para o caminho do domínio sobre a própria natureza, corpo, mente e espírito.

Nesse contexto, não faz sentido ver o ascetismo cristão apenas como um conjunto de técnicas, enquanto essa visão não revela sua identidade. Ao comparar diferentes tradições religiosas, devem-se evitar interpretações superficiais para não cair na armadilha do ecletismo ou do sincretismo em relação aos esforços para controlar as paixões. O ponto de partida para uma interpretação holística deve ser principalmente as diferenças doutrinárias e as características específicas de determinadas tradições.

Por exemplo, os conceitos de divindade podem se correlacionar desde uma lei impessoal até a energia do mundo. Em vez disso, no cristianismo, Deus é apresentado como Criador, Pessoa, Deus-homem e Cristo, o único Salvador do mundo. Outras diferenças significativas que distinguem radicalmente a espiritualidade cristã da espiritualidade de outras culturas religiosas estão relacionadas à ausência de dualismo, ahistoricismo, particularismo, esoterismo ou espiritualismo no cristianismo ortodoxo. Ao longo da história, a Igreja se deparou com esses fenômenos, compreendeu-os e condenou-os em várias manifestações teológico-filosóficas.

Para ilustrar algumas das diferenças, podemos apontar para a peculiaridade da vocação ao monaquismo, quando uma pessoa deixa seu ambiente habitual e entra em um mosteiro. Nesse caso, não se trata de fugir do mundo, ou de o mundo ser uma ilusão, ou de uma pessoa desprezar o mundo criado. Pelo contrário, a pessoa que deseja viver a vida monástica deixa o mundo bom para realizar o Reino de Deus, dado por Cristo.

Outro exemplo de antidualismo é a corporeidade. O ascetismo cristão não despreza o corpo, mas adverte contra a sua desfiguração como resultado do pecado (cf. Gálatas 5,19-23). No Novo Testamento, encontramos dois termos para o corpo: σῶμα e σάρξ. O primeiro termo refere-se ao corpo, que significa o próprio homem no tempo e no espaço, em sua concretude; é o homem em seu devir. Além disso, a Igreja é referida como o Corpo de Cristo (cf. Efésios 4,4,15-16), onde a realidade de Cristo, que anima sua Igreja, é gradualmente realizada. Em contraste, outra palavra, carne (σάρξ), refere-se à degradação do corpo como resultado de ações pecaminosas (cf. Gálatas 5,17-21).

No apóstolo Paulo podemos ver as peculiaridades dessa teologia, em que a vida segundo a carne (σάρξ) significa vida em pecado, e o corpo (σῶμα) serve como templo do Espírito Santo e participa da glorificação de Deus (cf. 1Cor. 6,19-20). É claro que traços de dualismo permaneceram na história do cristianismo, o que foi possível graças ao encontro entre a Bíblia e o pensamento filosófico. No entanto, a oposição entre matéria e espírito inerente ao dualismo é refutada na comparação do homem com Cristo – verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

A singularidade do ascetismo cristão também está relacionada ao seu objetivo. Em relação às paixões, o discípulo de Cristo não busca a apatia estoica ou a ataraxia, mas sim a purificação das paixões, transformando-as em virtudes. Portanto, o ascetismo ensinado pela Igreja tem como objetivo erradicar o pecado no aspecto negativo, para que a Palavra de Deus possa dar frutos abundantes (cf. Marcos 4,20), e no aspecto positivo, eliminar tudo o que impede o auto sacrifício e a mais alta liberdade de amor. Assim, o objetivo da espiritualidade cristã não é simplesmente o superamento, mas sim a sublimação ou espiritualização do mundo, possuindo a capacidade interior de retornar a Deus.

Ascese e graça de Deus

Outra diferença essencial que caracteriza e distingue a ascese cristã da não cristã é que nela não há nenhum traço de pelagianismo. Isso significa que a ascese cristã se baseia invariavelmente na graça, e não em técnicas físicas ou meditativas, às quais as espiritualidades do oriente asiático atribuem a capacidade de realizar autonomamente a consciência espiritual do homem.

Ao longo dos séculos, a tradição teológica da Igreja associava a heresia a todas as exageradas formas de ascetismo, como o gnosticismo ou o quietismo, que consideravam que a salvação era possível apenas ou através da submissão apática ou do conhecimento. Em sua exortação apostólica “Gaudete et exsultate” sobre a santidade no mundo contemporâneo, o Papa Francisco observa que, ao longo da história da Igreja, ficou bem claro que a medida da perfeição das pessoas é o grau de seu amor, e não a quantidade de informações e conhecimentos que elas podem acumular. Em vez disso, a mente dos chamados gnósticos está “murada na enciclopédia de abstrações”. Como resultado, ao se livrarem do mistério, eles “preferem Deus sem Cristo, Cristo sem a Igreja, a Igreja sem o povo” (37).

No espaço da Revelação cristã, o processo de interação entre Deus e o homem sempre começa com a ação da graça de Deus; o crescimento espiritual começa com Deus. É por isso que os frutos dos esforços ascéticos, como a paz, o amor, a presença de Deus, a liberdade, o testemunho autêntico, pertencem mais ao misticismo do que ao ascetismo. É precisamente a união da ascese com a mística que constitui o fundamento importante de todas as formas de monaquismo. No cristianismo, considera-se evidente que a evolução espiritual do homem depende sempre do dom da graça. Esta convicção, porém, não significa que não seja necessário trabalhar sobre si mesmo, mas sim que a iniciativa dos méritos pertence sempre a Deus.

Segundo o apóstolo Paulo, o ascetismo significa crucificação da carne com suas concupiscências (cf. Gl 5,24). À luz da aceitação do dom da graça e da união com Cristo, a teologia espiritual ensina a necessidade da morte do homem velho para que nasça o homem novo. Deste ponto de vista, o ascetismo significa permitir que o homem obscurecido pelo pecado morra e formar o homem iluminado pela graça.

Transfiguração de si mesmo e do mundo

O elemento único do ascetismo cristão é a cruz (cf. Mt 16,24), que não nos foi dado para nos torturar e matar, mas para que encontrássemos a salvação em Jesus, na sua gloriosa cruz, enquanto não há outra salvação. Não existe outro remédio para a nossa cruz além de Cristo: “Pelas suas feridas fomos curados” (Is 53,5).

Ao falar sobre mortificação ascética, a Igreja oferece vários meios para viver segundo o espírito de Cristo. Por exemplo, os meios primários são: os Santos Sacramentos, vários modos e tipos de oração, a prática das virtudes e os esforços para obter os frutos do Espírito Santo. Os meios secundários são, em particular, o serviço a uma causa de caridade ou missionária, a leitura espiritual, a amizade religiosa, o exame de consciência, os retiros, as peregrinações, a orientação espiritual, etc. Esses meios têm como objetivo reviver as virtudes do novo homem.

Ao longo dos séculos, o ascetismo na tradição cristã aprendeu a se distanciar de vários “ismos” (radicalismo extremo, dualismo, angelismo…), reconhecendo a ação da graça e a realidade em que o homem vive. É por isso que Jesus fala da necessidade de carregar a própria cruz (cf. Lc 14,27), ou seja, aceitar toda a realidade cotidiana.

Seguir Cristo, tomando a sua cruz, significa ser discípulo/discípula de Jesus e assemelhar-se a Ele, pois, ao morrer para o pecado no Batismo, o cristão recebe uma nova vida em Jesus Cristo (cf. Rm 6,3-11). Vivendo em Deus, ele é chamado a “andar no Espírito”, produzindo os frutos do Espírito (cf. Gal 5,16-25). Nessa perspectiva, o ascetismo cristão não expressa desprezo pelo homem, mas o orienta para a transfiguração deste mundo.

Pe. Yakiv Shumylo, OSBM

Bibliografia

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